A alentejana Vila de Moura foi conquistada por Afonso Henriques, no ano de 1166. Ao seu nome anda ligada uma velha história de amor e morte que, para que ninguém a esqueça, ficou gravada no brasão de armas da vila.
Segundo a lenda, esta vila chamava-se, no tempo dos mouros, Arucci-a-Nova, assim como a futura cidade espanola de Arronches era denominada Arucci-Vetus, ou seja, Arucci-a-Velha!
Ora Arucci-a-Nova era na altura uma pequena vila árabe que, depois de uma surtida de cristãos, tivera de ser reconstruída. Era seu senhor Abu-Assan, que lhe mandara fazer novas e fortes muralhas nas quais incluíra uma formosa torre circular, em cujo minarete flutuava o pavilhão sagrado do Islão. Rico Senhor, Abu-Assan, depois de recontruída a vila, entregou-a à sua filha predilecta, Sasúquia, e voltou para o palácio de Córdova. Salúquia ficara, pois, alcaidessa de Arucci-a-Nova. Não longe dali, em Arucci-Vetus, estava Brafma, o príncipe mouro do qual Salúquia estava noiva, e apaixonada.
Era de tarde. E, como todas as tardes Salúquia estava na torre do miranete entretendo as horas com as suas escravas e companheiras Fátima e Zuleima. Mas esse era um dia especial: era a véspera das suas bodas. No entanto, o olhar de Salúquia estava triste, estranhamente triste, e as escravas interrogavam-se silenciosamente sobre a razão daquela tristeza. Porque, na realidade, a sua senhora amava de verdade o homem que o destino e a vontade de Abu-Assan lhe davam para marido. Por isso, naquela tarde, o sol morria lá longe, lá para os lados do mar e, no alto do miranete, o silêncio era desusado. Em vez das alegres vozes que habitualmente soavam contando velhas lendas e histórias de amor e guerra, só se ouviam as cigarras cantando, longa e interminavelmente, o seu hino à terra e ao sol.
Contudo o silêncio, Fátima, a moura dos olhos azuis, murmurou:
-Salúquia, quando o luar tiver beijado as ondas do mar e o sol abrir de novo as portas do Oriente, teu noivo estará entre nós.
-Que Alá o permita!
-Mas porque está hoje tão triste? -perguntou com suavidade Zulmeia .
-Por muito o amar e por muito temer-murmurou Salúquia, que todo o dia se debatera com um negro pressentimento.
E Fátima, cheia de confiança, exclamou :
-Alá protege-o, e além disso os cristãos estão tão longe!...
Zulmeia, virada para Oriente, relembrando ainda o caminho por onde chegara, trazida como escrava por Abu-Assan, indicou:
-Dali virá, com o mouro da aurora por detrás! E Salúquia, apoiada na muralha, alongou o seu olhar pelo horizonte como que procurando um ponto móvel e desejado, deslocando-se na sua direcção. Fátima, um pouco perturbada por aquele silêncio quase total, embriagada pelo perfume das laranjeiras e roseiras floridas, iniciou uma velha lengalenga, outrora cantada pela sua velh escrava Zara, que há muito fora cantar para Alá, no Paraíso. A alcaidessa escutava-a distraída, com o pensamento percorrendo as dez léguas que separavam de si o seu bem amado Brafma.
Este por seu lado, deixara Arucci-Vetus ao cair da tarde, numa caravana luxuosa e feliz. Também ele amava aquela noiva que lhe davam, e assim o sol-poente, que punha fulgurações de sonho na predaria dos turbantes e nos arreios de ouro e prata dos cavalos, emprestava ao seu corpo um desassossego inusitado. Mas, conforme a noite avançava e a lua ia subindo sorridente no céu, o trotar dos cavalos foi esmorecendo pouco a pouco.
Faltaria gtalvez uma légua juntar Brafma a Salúquia quando o sol saudou do Oriente. A comitica, novamente a galope, atravessava um vale verdejante quando subitamente, os cavalos estacaram, relinchando nervosos. Ao longe avançava uma nuvem de poeira, de dentro da qual rebrilhavam ao sol nascente armas desembainhadas.
Bem sabiam os árabes que vestidos de festa como vinham, com ricas armas simuladas e cavalos pouco próprios para combate, não poderiam certamente vencer os cristãos que se aproximavam, preparados para a guerra. Mas Brafma exclamou:
-São cristãos! Vamos a eles e que Alá nos proteja! Antes porém, e adivinhando que não sobreviveria àquele combate desigual - via agora que os cristãos eram muito mais numerosos e bem armados, prontos para combate - tirou do peito uma rosa branca que colhera no seu jardim para oferecer a Salúquia, beijou-a e, escondendo-a numa algibeira som o manto junto ao coração, pediu:
-Se alguém se salvar, leve esta rosa a Salúquia. - E desembainhando o alfange de ouro, gritou: -Agora irmãos...é a morte! Alá assim o quis!
Dois irmãos, Álvaro e Pedro Rodrigues, comandavam a hoste cristã. Lutavam por conta própria, entregando depois ao seu rei as fortalezas conquistadas. Desta vez, apesar de os mouros se terem batido valentemente, foi-lhes fácil a vitória. Nenhum homem sobreviveu e Brafma morreu de uma cutilada de Álvaro Rodrigues.
Findo o combate, os cristãos, cuja finalidade era a conquista de Arucci-a-Nova, iniciaram um longo concidiábulo sobre o melhor meio de assaltarem a vila. Aquele grupo que acabavam de destruir, trajado de festa e armado de ouro e prata, num descampado pela madrugada, a caminho da vila, fê-los adivinhar ao que vinham. Por isso decidiram envergar as suas roupas e tentar penetrar na vila de surpresa. Os cavaleiros cobriram as suas cotas com os albornozes de seda os cadáveres e Ála varo escolheu para si o manto de Brafma. Montaram a cavalo e, num ápice, fizeram a légua que os separava de rucci-a-Nova, atroando os ares com gritos de simulação festiva e exclamações árabes de saudação e alegria.
No alto da torre da vila, o atalaia viu aproximar-se um turbilhão de poeira. Pensando ser a caravana nupcial, informou Salúquia, que, num ímpeto de alegria, ordenou que se abrissem as portas do castelo. Ela, com todas as escravas e amigas, subiu ao alto do minarete, para daí atirarem sobre Brafma uma nuvem de pétalas de rosa.
Entraram os falsos mouros como uma rajada de sangue. Impossível resistir ao seu ímpeto. A população, porém, quando percebeu o ardil, tentou a todo o custo impedir que os cristãos chegassem ao palácio de Salúquia. Esta, pálida mas serena, sem lágrimas já para chorar, mandou encerrar as portas do seu palácio. Trouxeram-lhe as chaves no momento exacto em que os irmãos Rodrigues chegavam às suas portas. Vendo que os cristãos se preparavam para as arrombar, Salúquia, lentamente, cheia de dignidade, subiu ao ponto mais alto do minarete, apertou as chaves numa das mãos e, elevando uma prece a Alá, num impulso rapidíssimo atirou-as para o vazio. Um imenso grito doloroso soou de todas as bocas: «Salúquia!!»
Por momentos, logo depois do baque do corpo no chão do terraço, pararam mouros e cristãos, parou a própria Natureza. Na esplanada do castelo estava agora o corpo da moura apertando as chaves numa mão. Um fio de sangue escorria mansamente da sua boca entreaberta.
Correu um cristão com o intuito de lhe arrebatar brutalmente as chaves, mas um gesto de Álvaro Rodrigues deteve-o. Esmagado pela heroicidade daquela mulher, curvou-se para lhe limpar do rosto belíssimo o sangue da sua própria traição. Nesse momento, da dobra do manto de Brafma caiu uma rosa branca, estranhamente manchada de sangue, que foi pousar suavemente sobre os lábios frios de Salúquia. A flor cumpria aderradeira súplica do mouro enamarado e trazia-lhe o beijo nupcial.
Álvaro Rodrigues, impressionado, desbarretou-se num gesto delicado de respeito. Ordenou que cessasse a chacina e pediu a seu irmão que trouxesse o corpo retalhado de Brafma para que juntos pudessem viajar até ao paraíso de Alá.
E, como preito imortal, proclamou que a partir desse dia Arucci-a-Nova se chamaria Vila da Moura.